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Opinião

Assédio sexual: questões conceituais – Rodolfo Pamplona Filho

Foto: Arquivo Pessoal 

Falar sobre assédio sexual é, em verdade, dissertar sobre uma doença social muito antiga, que é vista, porém, na sociedade contemporânea, sob uma nova roupagem. É, na expressão de Michael Rubinstein, lembrado por Pinho Pedreira, “um termo novo para descrever um velho problema”.

Na abordagem que faremos, neste trabalho, procuraremos fazer uma síntese  das  principais  teses  que  professamos  sobre  este  tão  controverso tema, permitindo uma visão panorâmica e – por que não dizer? – introdutória a aqueles que resolverem enfrentá-lo.

Em termos de direito positivado, a única forma de assédio sexual criminalizada no Brasil é a ocorrente nas relações de trabalho subordinado, pois inseriu no código Penal o seguinte tipo: “assédio sexual. art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” 

O problema do assédio, todavia, é muito mais amplo do que a forma conceituada e criminalizada no Brasil, o que poderá ser constatado durante nossa exposição. conceituamos,  por  isto,  o  assédio  sexual  como  toda conduta  de natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continuadamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual.

Por se constituir em uma violação do princípio de livre disposição do próprio  corpo,  esta  conduta  estabelece  uma  situação  de  profundo  constrangimento e, quando praticada no âmbito das relações de trabalho, pode gerar consequências ainda mais danosas. 

E a expressão “quando praticada no âmbito das relações de trabalho” é aqui utilizada não como mero recurso de estilística, mas sim para destacar que este fenômeno social não se restringe aos vínculos empregatícios como tipificado no  Brasil.     De   fato,   pode o assédio sexual se dar em várias outras formas de relação social, sendo exemplos didáticos o meio acadêmico (entre professores, alunos e servidores), o hospitalar (entre médicos, auxiliares e pacientes) e religioso (entre sacerdotes e fiéis).

Rodolfo Pamplona Filho

Professor Titular de Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador – UNI-FACS. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho. Juiz do Trabalho da Quinta Região.

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O trabalho das pessoas transgênero e as suas peculiaridades – Luciano Dorea Martinez

Foto: Arquivo Pessoal

Apesar da existência de alguns posicionamentos sensíveis à igualdade de tratamento e a não discriminação em matéria de orientação sexual e identidade de gênero, persistem, na vida real, violência, assédio, discriminação, exclusão, estigmatização, preconceito e discursos de ódio contra quem diverge da suposta “normalidade”, levando muitas pessoas a reprimirem sua identidade e a terem suas vidas marcadas por medo e invisibilidade.

A despeito de simbolicamente existir um plexo de medidas nacionais e estrangeiras que tenta repelir essas condutas, há muito a evoluir na contenção da formação dos estereótipos e na busca da aceitação social das pessoas LGBTIQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais, queer e outros mais).

Para bem entender a problemática no âmbito das relações de trabalho e para que o estudo distinga claramente os sujeitos aqui analisados, é importante, de início, distinguir sexo, gênero e sexualidade.

O “sexo” diz respeito ao conjunto das características que diferenciam, numa espécie, os machos e as fêmeas e que lhes permite reproduzirem-se. Assim, o sexo está relacionado às particularidades anatômicas e biológicas que conduzem à certificação de alguém como homem, mulher ou intersexo.

O sexo é, portanto, um atributo biológico. O “gênero”, por outro lado, designa a construção psicológica, cultural e social do sexo biológico. O gênero está associado à forma como uma pessoa se percebe e também como ela quer ser vista pela sociedade. Extrai-se do gênero uma experiência subjetiva de alguém a respeito de si mesmo e das suas relações com outros gêneros. O gênero é, por isso, uma questão sociocultural; um assunto de pertencimento social e cultural.

Nesse sentido, a pessoa transgênero é aquela cuja identidade de gênero é oposta ao sexo de nascença. O transgênero tem um sexo, mas se identifica com o sexo oposto e espera ser reconhecido e aceito como tal. Nesse sentido, será transgênero a pessoa que, por exemplo, nasce biologicamente homem, mas não se identifica assim, seja por perceber-se como mulher ou por colocar-se entre o masculino e o feminino, vendo-se, consequentemente, como um ser “não binário”.

Apesar do sexo biológico designado no seu nascimento, o transgênero sente-se psiquicamente, culturalmente e socialmente integrante de gênero diverso, exigindo, por isso, o reconhecimento dessa identidade, independentemente de sua orientação sexual (homossexual, bissexual, heterossexual etc.) e a despeito de cogitar ou de desejar a realização de cirurgia de redesignação sexual.

Anote-se, de forma completiva, que a pessoa que se identifica com o gênero biológico é referida pelo termo “cisgênero”. Assim, a cisgeneridade (o prefixo “cis” sugere algo “ao lado”, “na mesma linha”, “alinhado”) é, portanto, a condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao que lhe foi atribuído no nascimento. Diversamente, como já demonstrado, a transgeneridade (o prefixo “trans” sugere algo “além de”, “fora da mesma linha”, “desalinhado”) é a condição da pessoa cuja identidade de gênero diverge daquele que lhe foi imputado, por evidências, biológicas, no nascimento. Nela há uma discussão interna entre duas realidades, a morfológica, de nascença, e a psíquica, de identidade.

A “sexualidade”, por sua vez, como terceiro elemento central da discussão, “abrange sexo, identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução”. A sexualidade é a qualidade daquilo que se vivencia no âmbito sexual, podendo ser expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Embora ela possa incluir todas essas dimensões, nem todas são vivenciadas ou expressadas, porque influenciadas pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, legais, históricos, religiosos e espirituais. É no âmbito da sexualidade que uma pessoa, levada por sua própria orientação, pode se identificar como homossexual (lésbica ou gay), bissexual, pansexual ou assexual. A sexualidade, portanto, é uma questão afetiva.

Nesse ponto, é importante ressaltar que o “gênero” e a “sexualidade” (e, em especial, a orientação sexual) podem se comunicar, mas um aspecto não necessariamente depende ou decorre do outro. “Pessoas transgênero são como as cisgênero, podem ter qualquer orientação sexual: nem todo mundo é cisgênero e/ou heterossexual”.

Sintetizando o tópico, conforme sabiamente esclarece Letícia Lanz, “podemos descrever sexo como aquilo que a pessoa traz entre as pernas; gênero como aquilo que traz entre as orelhas e orientação sexual como quem ela gosta de ter entre os braços”.

Luciano Dorea Martinez

Doutor e Mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP. Pós-Doutor em Direito pela PUCRS Professor Associado I de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da UFBA. Titular da Cadeira n. 52 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Titular da Cadeira n. 26 da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Juiz do Trabalho do TRT da 5a Região. lucianomartinez.ba@gmail.com

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Consciência negra, encorajamento e vitória! – Solange Anatólio

Um dia fui convidada para ministrar uma palestra no período noturno, na cidade de Planalto, com o tema: “A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO” (estavam comemorando o centenário de Monteiro Lobato).

Escrevi um “monte” de coisas acerca do tema, usando como parâmetro o artigo 205 da Constituição Federal. Quando lá cheguei, quase enfartava, ao verificar que o evento estava ocorrendo em plena praça pública e, seguramente, metade da população de Planalto estava no local. Uma banda chamada “Caiçara” embalava a dança dos presentes. Vi diversos pais com os filhos nos ombros dançando ao som da banda.

Enquanto eu olhava perplexa a situação eu ainda pensava: Meu Deus! Quem vai prestar atenção em palestra de educação?

E, foi nesse momento que a banda parou de tocar e anunciaram do microfone do palco: “e agora com vocês, a palestra da Promotora de Justiça”. Eu pensei em não subir, pensei em simular um mal súbito. Eu só pensava no “mico” que eu ia passar por ter interrompido a banda que despertava a atenção e alegria dos presentes, para falar sobre um tema que não cabia naquele momento, mas mesmo assim eu fui.

Enquanto me dirigia para o palco, um filme foi-se descortinando em minha cabeça, foi assim que tive uma ideia que passou a ser minha marca registrada.

Eu comecei a narrar a história de uma menina negra muito pobre que nasceu em Simões Filho, e após ter a casa destruída por conta das chuvas, ficou desabrigada com a família e foram morar dentro de uma das salas de aula da Escola Clarice Ferreira, onde aquela menina estudava durante o curso primário. Contei que a menina e a família dormiam sobre as carteiras da sala de aula, e como não podiam usar o banheiro da escola durante o horário das aulas, a família fazia as necessidades fisiológicas dentro de um galão de tinta. A família só saía do interior da sala no horário que as duas filhas mais velhas iam estudar, ou quando os pais iam trabalhar, ou muito cedo ou à noite para usarem o banheiro.

Contei que a menina estudou a vida toda em escolas públicas. Até quando decidiu, por pura ousadia, cursar direito (à época um curso destinado a uma elite ou para alunos oriundos da rede privada de ensino), no entanto a menina nunca desistiu do sonho dela, mas como achava praticamente impossível passar no vestibular de direito, resolveu fazer o vestibular para o curso de história, com o pensamento de que, depois, conseguiria uma matrícula especial para o curso de direto.

No entanto, no dia em que foi fazer o vestibular para história, o ônibus que a conduzia para Salvador colidiu com outro veículo nas imediações do CIA, daí a menina levou um corte no supercílio direito, cuja cicatriz é olhada com orgulho hoje. Ante esse fato, foi socorrida no Hospital do CIA, interrompendo o sonho desse vestibular.

A menina então revolveu ousar no próximo vestibular e foi aprovada no curso de direito. A menina, apesar de não ser inteligente, era muito estudiosa e determinada. Após se formar em direito, a menina resolveu ir um pouco mais nos estudos. Fez o concurso para Promotora de Justiça e foi aprovada.

E no final eu disse que a menina era aquela Promotora que estava falando com eles naquele exato momento. Para minha surpresa, ao terminar de contar a trajetória da menina negra de Simões Filho, ao descer do palco, percebi que uma enorme fila se formou de pais, com os seus respectivos filhos me agradecendo muito emocionados, alguns até chorando. Eles me diziam: “obrigada pela esperança que a senhora trouxe para nossos filhos”.

Enfim, a palestra que se tornou padrão em minha vida começou assim, por conta do som estrondoso de uma banda em meio a uma palestra sobre educação.

E lá estava eu narrando, na terceira pessoa, minha história de Transformação Social através da Educação.

Assim, se a palavra convence, o exemplo arrasta. Ao longo de meu caminho tento arrastar tantas quantas pessoas eu puder. Eu sempre quero mostrar que a nossa determinação é o fator transformador de nossas vidas, superando o racismo e o preconceito.

A minha determinação transformou minha vida, principalmente através da Educação. Nunca percam a menor esperança de que, embora tudo lhe pareça difícil ou impossível, nada que você alcance ou deseje está impossível de seu alcance. Lembre-se da menina negra de Simões Filho. Se ela conseguiu, por que você não?

Consciência Negra é a solução!

Solange Anatólio
Promotora de Justiça

O caso de Mariana Ferrer e o machismo no Direito: precisamos falar sobre isso! – Luciana Santos Silva

Não pretendo, no presente escrito, discorrer sobre a sentença que absolveu André Aranha da acusação pelo crime de estupro de vulnerável. Minha perspectiva de analise visa problematizar a condenação de Mariana Ferrer. O Brasil está no 5º lugar dos países que mais matam mulheres no mundo no contexto de violência doméstica segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). À par das cifras ocultas, a violência doméstica e intrafamiliar com a mulher no país é alarmante.

Essa triste realidade é sustentada pela cultura patriarcal que reifica e inferioriza tudo o que é ligado ao feminino. A violência contra os corpos das mulheres (lesões corporais, estupros, feminicídios etc.) é precedida por uma outra violência: o machismo estrutural. Somos violentadas quando sofremos agressões físicas, mas também quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identifica que mulheres ganham menos do que os homens em todas as ocupações selecionadas na pesquisa; quando somos sub representadas na política, na cúpula do Poder Judiciário e nas nossas entidades de classe mesmo quando somos maioria na base.

É nesse cenário que o campo jurídico está inserido podendo referendar posições machistas ou superá-las. No caso de Mariana Ferrer prevaleceu a primeira opção. Na sessão de audiência a posição processual de Mariana Ferrer foi invertida. De vítima ela passou a ser acusada e, ato contínuo, condenada pelo advogado de André Aranha sob o referendo silencioso das demais autoridades presentes no ato.

A inversão dos pólos processais e a estigmatização da vítima nos crimes de violência contra a mulher, é uma expressão do machismo na medida em que o comportamento  feminino passa a ser o centro do julgamento. Em 2019 foi amplamente divulgado a absolvição do crime de estupro de vulnerável  em que um motorista de aplicativo era acusado. Em seu voto a desembargadora relatora, Cristina Pereira Gonzales, afirma que “se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido“. Assim como no caso de Mariana Ferrer os argumentos esposados julgam e condenam o comportamento social da vítima invisibilizando a conduta criminosa objeto e razão de existência do processo. A análise dos elementos típicos do crime de estupro cede lugar ao debate sobre o comportamento da vítima, a roupa que usava e o local em que estava.

A expressão de machismo no campo jurídico não é um fenômeno restrito aos dois casos citados. O direito penal até o ano de 2005 tratava o crime de estupro como crimes contra os costumes e a condição da vítima enquanto mulher honesta era requisito de tipificação de algumas infrações. Os movimentos feministas, importante registrar, atuaram e atuam de forma coordenada denunciando as expressões de patriarcalismo na lei, doutrina e na atuação prática do campo jurídico forçando mudanças em prol da igualdade entre mulheres e homens.

A cultura machista impõe um lugar social de subalternidade e silenciamento para o feminino. A audiência do caso Mariana Ferrer se constituiu em verdadeira violência institucional ferindo o dever de tutela da dignidade humana pelo campo jurídico. A inversão dos papéis vítima/acusado fortalece o medo das mulheres formalizarem denúncias favorecendo a impunidade e, em última instância, a cultura do estupro. Se a culpa é da vítima, o recado é: pode estuprar. É pela construção da igualdade de gênero que precisamos falar sobre machismo no Direito!

Luciana Santos Silva

Advogada, Presidente da OAB-Conquista, 2022-2024, ex-conselheira Seccional da OAB/BA, feminista, professora do curso de direito da UESB e doutora pela PUC/SP.

A Prova no Processo Penal e o Pacote Anticrime – José Maurício Vasconcelos Coqueiro

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo estudar a faculdade da iniciativa probatória do juiz no Processo Penal, fato que tem sido objeto de larga discussão doutrinária, seja no Brasil, seja no exterior, especialmente nos países de origem ibérica, tendo em vista o impacto que tal situação pode exercer na imparcialidade do julgador.

A pergunta que se busca responder é se a faculdade da iniciativa probatória pelo juiz tem respaldo no Processo Penal disciplinado na Constituição da República. Mais especificamente, o problema que se apresenta é como efetivar o sistema acusatório positivado pela Constituição da República e como a gestão da prova nas mãos do julgador constitui entrave a tal efetivação.

Para tanto, alguns aspectos mais recentes da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2020, especialmente o seu art. 3º-A, precisam de uma melhor análise, a fim de se aferir se os artigos do Código de Processo Penal minudenciados à frente já não estariam revogados ante a novel legislação.

Antes, serão apresentados os elementos definidores de cada sistema processual penal para, enfim, discutir qual modelo foi preconizado pela Constituição da República. Igualmente, necessária será uma breve incursão no Direito Comparado, para trazer uma visão mais ampliada dos sistemas processuais penais atualmente adotados a fim de alargar a visão do leitor sobre o tema em países que nitidamente assim já o fizeram no plano legislativo e nas práticas judiciárias.

1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS (SÍNTESE)

É nítido que a Constituição Federal de 1988, por intermédio do art. 129, inciso I, ao separar a figura do acusador da do julgador e ao definir a forma de se iniciar o processo, induvidosamente adotou no Brasil o sistema acusatório, pois as duas situações anteriores constituem os núcleos fundantes, os elementos fixos do sistema acusatório. Mesmo que não seja o objetivo primordial conferir luzes ao sistema inquisitivo, de princípios de inquisitivos, faz-se a distinção abraçada pela doutrina com a finalidade de oferecer ao leitor um panorama mais ampliado da dita diferenciação.

No caso do sistema inquisitivo, é prescindível a necessária separação de um acusador distinto do juiz; de igual modo, o início ao processo – pode ser iniciado por notícia criminis, acusação ou de ofício pelo juiz.

Para os fins aqui propostos, a diferenciação entre os dois sistemas da forma como colocada, ainda que concisa, já é suficiente para clarificar o assunto, todavia outro marco significativo, embora não exclusivo, é a gestão da prova pelo juiz no processo penal, posta como pedra angular a imparcialidade dos julgamentos.

Isso não ficará no esquecimento.

A retirada ou subtração dos poderes instrutórios do juiz no processo penal, do ponto de vista histórico, não é nada de medieval. É algo relativamente contemporâneo aos dias atuais, tanto no exterior como no Brasil. Aqui o comparativo torna-se importante dada a resistência da sociedade, varrida atualmente por uma onda punitivista e conservadora sem precedentes, em aceitar um processo penal democrático como sói possível com o sistema acusatório.

2. DIREITO COMPARADO

Por disciplina meramente hierárquica, aborda-se em primeiro lugar, no direito continental, o caso específico de Portugal. O processo penal português é de estrutura acusatória, pois assim determina o artigo 32.º da Constituição, após a Revolução dos Cravos em 1974, colocando fim a um longo e tenebroso período da ditadura comandada por Antônio Salazar, promulgada em 2 de abril de 1976, in verbis:

Artigo 32.º
Garantias de processo criminal
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Como não poderia deixar de ser, para cumprir o mandamento constitucional, em primeiro de janeiro de 1988, entrou em vigor o novo Código de Processo Penal Português, classificado, pela Exposição de Motivos, como correspondente às exigências do sistema acusatório.

Nessa incumbência reformadora, o Governo deveria obedecer ao mandato constitucional que determinava – e ainda determina – a adoção de um processo penal com estrutura acusatória. Por isso, a Assembleia da República traçou várias diretrizes a serem seguidas, entre as quais se pode destacar: a) estabelecimento da “máxima acusatoriedade” do processo; b) o incremento do que chamou de igualdade material de armas entre acusador e acusado; c) monopólio da acusação nas mãos do Ministério Público; d) liberdade de atuação para o defensor; e) fortalecimento dos princípios da oralidade, imediação, celeridade, concentração, contraditório e publicidade; f) nulidade dos atos que não respeitem as formas estabelecidas; e g) o caráter excepcional e provisório da prisão preventiva.

Como dito, levando em consideração todos os aspectos delineados pela Assembleia portuguesa, o Decreto-Lei 78, de 17 de novembro de 1987, aprovou o novo Código de Processo Penal, revogando o anterior. Sua entrada em vigor se deu em 01.01.1988, conforme previsto pela Lei 17, de 1º de junho de 1987 (ANDRADE, 2013, p. 115-116).

Como ocorre nos sistemas acusatórios, o processo penal português somente tem início com a acusação pública, elemento fixo e caraterizador da estrutura acusatória.

Seguindo a ordem de hierarquia constitucional escolhida, o outro caso em que a estrutura acusatória do processo penal adquire estatura constitucional é o dos Estados Unidos Mexicanos.

Os professores María Eloísa Quintero e Miguel Polano-Orts, em sua obra “Principios del Sistema Acusatório: una visión sistémica”, logram tecer importantes considerações sobre o modelo do processo penal mexicano, que positiva o modelo acusatório na sua Carta Constitucional.

Assim, afirmam que, após a reforma de 2008, a Constituição Política do Estados Unidos Mexicanos assinala que o processo penal será acusatório e oral, regido pelos princípios da publicidade, do contraditório, da concentração, entre outros:

Tras la reforma de 2008, el nuevo artículo 20 de la Constitucíon Política de los Estados Unidos Mexicanos señala que el proceso penal será acusatorio y oral, y regirá por los principios de publicidade, contradicción, continuidade e inmediacíon. (POLANO-ORTS; QUINTERO, 2010, p. 15)

Como visto, a Constituição do México expressamente dispõe que o sistema processual penal vigente no país deverá ser acusatório.
À luz da temática gestão da prova, tão cara à grande parte da doutrina nacional, está claro que o sentido da Lei Maior do México é da separação entre a acusação e o juízo, cabendo ao primeiro a prova da culpa.

O processo penal alemão é acusatório. Conquanto o juiz tenha certa discricionariedade para colher elementos de prova que entenda necessários, a ele é vedado iniciar a persecução penal de ofício, pois esta é condicionada ao oferecimento de uma acusação:

Na atualidade, o processo penal alemão está estruturado da seguinte maneira: a) a investigação criminal não é considerada uma fase do processo jurisdicional, já que, com a extinção do juizado de instrução, quem a preside é o Ministério Público: b) o juiz não tem poderes para abrir ex officio a fase jurisdicional da persecução penal, que está condicionada ao oferecimento de uma acusação; c) a legitimidade ativa somente está confiada ao Ministério Público; d) o juiz não pode proceder de ofício, mas, após o início do processo, tem liberdade para buscar os elementos que entenda necessários para poder julgar; e) estão previstos os princípios de publicidade, oralidade, igualdade de armas, contraditório, presunção de inocência, in dubio pro reo, legalidade e oportunidade; f) o juiz tem liberdade à hora de valorar a prova, sempre expondo os motivos de suas decisões; g) a desobediência às normas processuais pode provocar a nulidade dos atos praticados; e h) possibilidade de recurso contra as decisões proferidas. (ANDRADE, 2013, p. 115).

No caso da Itália, como no Brasil, inexiste, na Constituição da República, uma disposição expressa afirmando que o processo penal é acusatório, no entanto nenhuma dúvida remanesce, tanto lá como aqui, de que o sistema adotado é o acusatório.

Na península, o Código de Processo Penal que entrou em vigor já agora no ano de 1988 (um quase nada do ponto de vista historiográfico) adotou este sistema no seu artigo 328, que sobremaneira afastou o juiz da acusação, como bem explica o filósofo Luigi Ferrajolli em sua obra “Direito e Razão” (2010):

O novo Código de Processo Penal e o sistema acusatório – Este modelo constitucional de processo – que permaneceu congelado por quase quarenta anos – encontrou parcial atuação com o novo Código de Processo Penal aprovado com o DPR 447, de 22.09.1988, em vigor a partir de 24.10.1989. Rompendo uma tradição plurissecular, o novo Código adotou o sistema acusatório não expressamente previsto pela Constituição per si, configurando o novo processo como uma relação trigonal entre juiz, acusação e defesa, em antítese não apenas ao processo medieval de tipo inteiramente “inquisitório” mas também àquele “misto” do velho Código Rocco, que era baseado, no que tange à fase instrutória, na confusão entre juiz acusação e na relação diádica inquisidor/inquirido. A principal inovação estrutural introduzida foi a separação do juiz da acusação, mediante a eliminação da velha figura do juiz instrutor, substituída por um juiz para as investigações preliminares em princípio estranho ao seu desenvolvimento (art. 328), e do pretor, que agora possui função apenas judicante. Ao Ministério Público, de outra parte, foram conferidas as funções via de regra postulantes graças a duas importantes inovações: a exclusão da instrução sumária e a supressão já antecipada pela Lei 330, de 05.08.1988, do seu poder de determinar a captura do imputado, podendo agora apenas dispor do mecanismo denominado fermo, por não mais de 96 horas, em caso de perigo de fuga ou de graves indícios de culpabilidade dos delitos punidos com penas não superiores no mínimo de 2 e no máximo a 6 anos (art. 384). (FERRAJOLI, 2010, p. 677-678).

Desde o ano 2000, o sistema acusatório guia o processo penal chileno, cuja experiência vem sendo alvo de intensos estudos, inclusive por pesquisadores brasileiros.

O Código de Processo Penal Chileno dispõe que o princípio acusatório norteia o modelo de procedimento criminal. Diz-se isso porque o artigo terceiro é explícito em estabelecer que cabe exclusivamente ao Ministério Público a condução da investigação criminal:

Artículo 3. – Exclusividad de la investigación penal. El ministerio público dirigirá en forma exclusiva la investigación de los hechos constitutivos de delito, los que determinaren la participación punible y los que acreditaren la inocencia del imputado, en la forma prevista por la Constitución y la ley.

Demais disto, no Chile, sublinhe-se a existência do juiz de garantias, do procedimento oral, da presunção de inocência e, sobretudo, da direção da investigação criminal por parte dos promotores de justiça.

É exatamente na exclusividade do Ministério Público na investigação criminal e na proposição da ação penal que se baliza a afirmação de que o Chile adota um sistema acusatório de processo penal.

Tendo por base a gestão da prova como um dos critérios diferenciadores dos sistemas processuais penais, pode-se afirmar que o processo penal colombiano, datado de 2004, é acusatório, visto que a lei adjetiva veda a iniciativa probatória do juiz, a prova de ofício, e expressa que a iniciativa probatória é apenas das partes.

Grifem-se, nesse sentido, os arts. 357, 361 e 374 do Código de Processo Penal da Colômbia:

Artículo 357. Solicitudes probatorias. Durante la audiencia el juez dará la palabra a la Fiscalía y luego a la defensa para que soliciten las pruebas que requieran para sustentar su pretensión.
El juez decretará la práctica de las pruebas solicitadas cuando ellas se refieran a los hechos de la acusación que requieran prueba, de acuerdo con las reglas de pertinencia y admisibilidad previstas en este código.
Las partes pueden probar sus pretensiones a través de los medios lícitos que libremente decidan para que sean debidamente aducidos al proceso.
Excepcionalmente, agotadas las solicitudes probatorias de las partes, si el Ministerio Público tuviere conocimiento de la existencia de una prueba no pedida por estas que pudiere tener esencial influencia en los resultados del juicio, solicitará su práctica.

Artículo 361. Prohibición de pruebas de oficio. En ningún caso el juez podrá decretar la práctica de pruebas de oficio.
Artículo 374. Oportunidad de pruebas. Toda prueba deberá ser solicitada o presentada en la audiencia preparatoria, salvo lo dispuesto en el inciso final de l artículo 357, y se practicará en el momento correspondiente del juicio oral y público. (grifos nossos)

A doutrina especializada adverte, porém, que a Suprema Corte Colombiana mitigou a regra da proibição da produção da prova de ofício pelo juiz, art. 361:

Sem embargo, a Corte Suprema de Justiça, Sala de Cassação Penal, com a relatoria do magistrado Edgar Lombana Trujillo, aprovada por Ata n. 28, de 30 de março de 2006, veio a limitar a rigidez desta norma, estabelecendo “(…) 4.5. Es aqui que, em términos generales, el Juez Penal está em la obligacíon de acatar ek artículo 361 de la Ley 906 de 2004, em cuanto prohíbe decretar pruebas de oficio, pues se trata de um mandato legal que tiene razón de ser en el sistema acusatorio implementado em Colombia. Sin embargo, cuando por motivos de índole constitucional el Juez arribe a la conviccíon de que es imprescindible decretar una prueba de oficio, antes de hacerlo debe expressar con argumentos cimentados las razones por las cuales en el caso concreto la aplicacíon del artículo 361 produciría efectos inconstitucionales, riesgo ante el cual, aplicará preferiblemente la Carta, por ser la ‘norma de normas’, como lo estipula el artículo 4º constitucional”. (…) (JUNOY, 2017, p. 124).

A despeito da mitigação da rigidez do multicitado art. 361 do Código de Processo Penal Colombiano, em nada altera a afirmação de que, no país latino em questão, o princípio que se adota é o acusatório, embora releve o que mais tarde também se verificará no Brasil: as arestas que impedem a efetividade do sistema acusatório.

Já em relação ao Peru, cujo atual Código de Processo Penal data de 2006, tem-se que a Constituição não estabelece expressamente o sistema processual vigente, se acusatório, inquisitivo ou misto, tal qual a Constituição do México e a de Portugal.

Assim, novamente recorremos aos Professores María Eloísa Quintero e Miguel Polano-Orts, que afirmam ser acusatório o sistema processual penal peruano. Após cotejar diversos artigos da Carta Magna peruana, assim assinalam os professores citados:

Como el lector podrá advertir, el texto es claro: la audiência preliminar deberá ser oral, concentrada (es decir, com la presencia indispensable de acusación, defensa y juez), contradictoria (así lo disse el n. 3), y en igualdad de armas. Ahora bien, nos preguntamos? no es el artículo sino un ejemplo – uma concretizacíon – de los principios de toda audiência de sistema acusatorio? Sin duda. Es más, incluso podría entenderse que dicho artículo es generalmente em un sistema de audiência; el ordenamento peruano – hasta donde alcanzo a entender – no lo menciona expressamente. De todas formas, incorporar um sistema es incorporar los elementos que le son próprios, sus reglas de funcionamento, y su autopoiesis. Siendo ello así, y no habiendo uma negacíon expresa por parte del ordenamento, sólo podemos afirmar que tambíen Perú adopta el sistema de audiências y, por ende, las reglas que le son propias: entre ellas, los principios. (POLANO-ORTS; QUINTERO, 2010, p. 26).

Também defende essa tese a doutrina de Joan Picó i Junoy:

De igual modo, no novo Código Processual penal peruano, de 29 de julho de 2004, que entrou em vigor em 1º de julho de 2006, rege o princípio acusatório, sobre a base da nítida separação de funções instrutórias (Ministério Público), de controle da investigação (juiz da investigação preparatória) e decisórias (juiz penal); a devida correlação entre a acusação e a sentença; e a proibição da reformatio in peius. (JUNOY, 2017, p. 121).

Como visto, para os autores, se os princípios que norteiam o processo penal peruano são princípios próprios do sistema acusatório, é crível dizer que este é, pois, o norte a ser seguido.

Assim, a oralidade, a concentração da audiência, a separação das funções de acusar e julgar, o contraditório e a paridade de armas são elementos que municiam a afirmação de que o sistema processual penal vigente no Peru é o acusatório.

Por fim, no que tange ao Reino Unido e Estados Unidos da América, países que adotam o common law, a doutrina se divide em apontar que o processo penal possui natureza acusatória ou pertencente ao adversary system.

Todavia, apesar da divergência, não se pode ter o adversary system como antítese ao sistema acusatório, senão como uma manifestação mais rígida do sistema acusatório clássico, no qual não somente o processo tem início apenas com o oferecimento de uma acusação, como somente se admite a figura do juiz passivo.

É justamente na atuação do juiz que reside a fundamental diferença entre o sistema acusatório comum e o adversary system, porquanto naquele é permitido que o juiz tenha uma atuação mais ativa:

Entre os juristas pertencentes ao direito continental, é comum a afirmação de que o processo penal dos países da Common Law possui natureza acusatória. Entretanto, quando se observa a opinião dos juristas pertencentes à Common Law, nitidamente se abrem duas vias para sua classificação. Para um primeiro grupo, que se soma ao posicionamento de seus companheiros do direito continental, a classificação a ser dada ao seu processo seria a de integrante do sistema acusatório. Mas, para um segundo grupo, cujo entendimento parece ser majoritário, o processo penal inglês e norte-americano seria integrante do adversary system, ao invés do sistema acusatório. Esse sistema se caracteriza pela atuação discricionária das partes no processo penal, tendo ele início somente com o oferecimento de uma acusação. (…). Apesar da divergência doutrinária, a nosso juízo, essa discussão simplesmente demonstra duas maneiras distintas de ver uma mesma realidade, como quem vê os dois lados de uma única moeda. Se a doutrina processualista continental, conforme veremos, afirma que o sistema acusatório exige, para sua configuração, a presença de uma acusação ou de um acusador distinto do juiz, o que se nota é que o adversary system dá como certa essa presença. Mais que isso, ela centra toda a importância de seu processo no modo como irão intervir as partes e o juiz ao longo de seu desenvolvimento. Assim, acusador e acusado adotariam uma postura eminentemente ativa, ao passo que o juiz atuaria como um verdadeiro árbitro ou mediador, deixando toda a atividade probatória a cargo das partes. Como se pode observar, os dois sistemas têm uma preocupação em comum, que é garantir que decisão seja proferida por um juiz imparcial. E é exatamente na busca dessa imparcialidade que se pode verificar o que distingue um sistema do outro. (…) Estaríamos autorizados a dizer, então, que o adversary system seria uma manifestação mais rígida ou tradicional do sistema acusatório clássico, enquanto a participação mais ativa do juiz no processo penal seria considerada como uma evolução ou flexibilização desse sistema, recendo, por isso, o nome de inquisitorial system. Dessa forma, não vemos grandes inconvenientes em afirmar que o adversary system e o inquisitorial system são duas maneiras distintas de catalogar a uma mesma estrutura sistêmica de processo penal, que recebe, por parte da doutrina processualista continental, o nome de acusatória. (ANDRADE, 2013, p. 112-113).

Como visto, em síntese, seja no sistema acusatório “comum”, seja no adversary system, há uma preocupação com a imparcialidade, pelo que é possível afirmar que o sistema processual penal adotado tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América é, por assim dizer, acusatório.

A estrutura do processo penal norte-americano é assim definida por Mandarino:

Por ser um sistema misto de Civil Law e Commom Law, importante frisar que o processo judicial norte-americano deve respeitar os princípios de ordem constitucional. São eles: A repulsa aos aspectos inquisitoriais, vedando o impulso oficial do magistrado (inquisitorial proceedings). O relacionamento entre as partes e o juiz é neutra, decidindo o magistrado apenas quando provocado pelo autor ou pelo réu, conhecido no processo civil como adversary proceedings. No processo penal, as partes são representadas pelo Ministério Público (prosecutor) e pelo acusado (accused), conhecido como accusatory proceedings. (MANDARINO, 2016, p. 196).

3. O CASO BRASILEIRO

A imersão, ainda que aligeirada, nos sistemas processuais penais da Alemanha, Itália, Portugal, México, Peru, Chile, Colômbia, Reino Unido e Estados Unidos, todos países com Constituições ou costumes democráticos longínquos ou alcançados na atualidade, tem alguns objetivos: primeiro, destacar que o sistema processual na nações acima elencadas é o acusatório, introduzido nas respectivas legislações em tempos em que já se tinha ou se conquistaram regimes democráticos.

O destaque, especialmente nos países que deixaram, na década de 1980, o grupo denominado de “ditaduras do cone sul”, o Brasil inclusive, e fizeram as suas respectivas migrações legais rumo ao sistema acusatório como parte de um consenso social e político de cada sociedade, sem que tenha ocorrido resistências ou politizações de qualquer natureza. No Chile, por exemplo, o juízo de garantias foi implantado com absoluta naturalidade.

Ao revés, no Brasil, a reação ao juízo de garantias (instituto clássico do sistema acusatório) logo se deu por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal,1 cuja autoria ficou a cargo de associações de magistrados e do Ministério Público, a exemplo da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), além de partidos políticos com representação no Congresso Nacional (PTB e PSL), todos engajados com as ideais e os princípios da extrema-direita brasileira. Questões técnicas, até outro dia restritas à academia e ao mundo jurídico nacional, ganharam contornos políticos indesejáveis, revelando nítida falta de maturidade democrática e uma indisfarçável vontade de manter os laivos inquisitivos da legislação processual, mesmo diante de uma antinomia própria entre esta e a Constituição da República.

¹STF, ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.

Razão assiste ao Baiano Rômulo de Andrade Moreira (2007) quando diz, em outras palavras, que o sistema processual de cada país traz consigo o retrato do regime político vigente. Se acusatório, estar-se-ia diante de uma democracia, ao tempo em que, se inquisitivo o sistema, o regime seria autoritário.

Faz todo sentido. O próprio Código de Processo Penal brasileiro, retalhado, porém ainda vigente, desde sua edição em 1941, sempre foi marcado pelo seu caráter inquisitório, com fortíssima inspiração fascista. Veja-se o exemplo do que consta na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal brasileiro que entrou em vigor por intermédio de Decreto-Lei em pleno Estado Novo:

Atribui ao juiz a faculdade de iniciativa de provas complementares ou supletivas, quer no curso da instrução criminal, quer a final, antes de proferir a sentença. Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecidas pela lei civil, salvo quanto ao estado das pessoas; nem é prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção.

A faculdade de iniciativa probatória destacada na Exposição de Motivos, conforme prometido lá atrás, será mais avante objeto de exame, na perspectiva de um verdadeiro entrave à implantação no Brasil, deveras, do sistema acusatório.

O que se pretende aqui e agora é deixar evidenciada a resistência do establishment político e judiciário brasileiro à adoção do sistema acusatório. Desde a Constituição Federal de 1988, a doutrina nunca divergiu de que ela trazia no seu conteúdo os princípios acusatórios no bojo do sistema processual acusatório. Deixou a Constituição absolutamente separadas as funções de investigar e julgar e impediu, por exemplo, a inciativa da ação penal ex ofício.

Apesar disso, reformas expressivas ocorreram depois de 1988, alterando o Código de Processo Penal, como a que deu nova redação ao art. 156, inciso II, do CPP, pela Lei 11.690, de 9 de junho de 2008, sem que tenha ocorrido uma preocupação geral do mundo acadêmico e jurídico, advogados inclusive, em obter do Parlamento a revogação expressa dos artigos do Código de Processo Penal confrontantes com a Constituição Federal, conferindo ou reforçando os poderes instrutórios do juiz no processo penal. Houve um silêncio geral na época da edição da referida lei, certamente decorrente dos nossos costumes e práticas judiciárias.

Não adianta agora pretendermos a expiação de pecados. O olhar do jurista doravante deve ser em direção a um horizonte mais animador quanto à democratização do processo penal brasileiro. Com ou em vigência suspensa provisoriamente pelo Supremo Tribunal Federal, o fato é que breve, em um olhar animador e crédulo do futuro, passaremos a ter a implantação do juízo de garantias, cuja suspensão liminar não se deu por um único argumento técnico-científico aceitável.

De igual sorte, é fato que temos o art. 3º-A do CPP dizendo, com toda loquacidade, que o processo penal brasileiro é regido pela estrutura acusatória.

Apesar de todo o ânimo, a questão merece um pouco mais de atenção a fim de se saber se o antes mencionado artigo revogou todos os demais do Código de Processo Penal que conferem ou conferiam poderes instrutórios ao juiz pela lei adjetiva penal por tudo quanto lhe foi aposto pela Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Com esta insegurança indisfarçável do autor sobre o assunto é que avante destacamos algumas considerações.

Um ponto que não pode passar ao largo é saber se a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que introduziu o art. 3º-A no Código de Processo Penal, para dizer expressamente que o processo penal brasileiro passou a ter estrutura acusatória, não teria revogado múltiplos artigos do referido Código – a exemplo dos arts. 5º, inciso II, 39, 156, inciso I, 209, 209, parágrafo primeiro, e 385 –, e no caso da legislação especial, também o art. 3º da Lei 9296, de 24 de julho de 1996, ou seja, aqueles pertinentes à iniciativa probatória do juiz ou à transgressão de dispositivos outros incompatíveis com o sistema preconizado no referido art. 3º-A.

A resposta ao questionamento passa inexoravelmente pela constatação dos elementos fixos identificadores dos dois principais sistemas examinados ao longo do estudo. No caso do sistema inquisitivo, de princípio inquisitivo, o caráter prescindível de um acusador distinto do juiz e a instauração do processo por acusação, notitia criminis ou de ofício. No mesmo rastro, o sistema acusatório, de princípio acusatório, traz como elementos fixos a obrigatória separação entre acusador e julgador e a forma de iniciar o processo.

Nota-se que a gestão da prova pelo juiz, embora funcione como elemento diferenciador entre os dois sistemas, talvez o mais importante de todos, não se presta a funcionar como o único marco disruptivo entre um sistema e outro. Então, os artigos do Código de Processo Penal que admitem a iniciativa probatória do juiz permaneceriam, em princípio, inalterados no ordenamento jurídico brasileiro, criando uma antinomia própria entre a Constituição Federal e o Código de Processo Penal perfeitamente passível de discussão em sede de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ou em caráter incidental.

Nessa linha de intelecção, igualmente, não se pode perder de vista autorizada doutrina onde se coloca a gestão da prova como o único elemento diferenciador dos sistemas, como é possível aferir pela leitura de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.

Assim, para a devida compreensão do Direito Processual Penal é fundamental o estudo dos sistemas processuais, quais sejam, inquisitório e acusatório, regidos, respectivamente, pelos referidos princípios inquisitivo e dispositivo. Destarte, a diferenciação destes dois sistemas processuais faz-se através de tais princípios unificadores, determinados pelo critério de gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito crime, através da instrução probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identifica o princípio unificador. Com efeito, pode-se dizer que o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do órfão julgador, o qual detém a gestão da prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao julgador. (…) Já no sistema acusatório, o processo continua sendo um instrumento de descoberta de uma verdade histórica. Entretanto, considerando que a gestão da prova está nas mãos das partes, o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado no caso concreto (o que os ingleses chamam de judge made law). (COUTINHO, 2001, p. 28).

Conforme o raciocínio da doutrina antes destacada, a iniciativa probatória do juiz no processo penal estaria vedada desde o advento da Constituição Federal de 1988, e isso é perfeitamente explicável. Como se viu, mesmo antes da entrada em vigor da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, os núcleos fundantes e fixos do sistema acusatório achavam-se, como se acham, presentes na Carta Magna, isso porque é nítida a separação entre o órgão julgador e o de acusação, bem como resta vedada ao julgador a possibilidade de dar início ao processo, situações contidas no art. 129, inciso I, da Constituição Federal.

Se, antes, doutrina e jurisprudência2 não discrepavam quanto à estrutura acusatória do processo penal brasileiro, com o advento do art. 3º-A do Código de Processo Penal, tornou-se ociosa a discussão em torno de tal questão (sistema acusatório). Voltando os olhares para o foco central do presente trabalho, a gestão da prova pelo juiz no processo penal, a matéria estaria superada, no sentindo de se entender como presente a total vedação de tal iniciativa ao juiz.

Dois outros pontos remanescem: admitir-se que a gestão da prova não é o único elemento diferenciador entre o sistema inquisitivo e acusatório e a segunda parte do art. 3º-A do Código de Processo Penal com a determinação de que são vedadas ao juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação. Com isso, luzes precisam ser acesas, tendo como foco os artigos do Código de Processo Penal que autorizam a iniciativa probatória do juiz “no curso da instrução”, a exemplo dos arts. 156, inciso II, 209, caput e Parágrafo único.

Dada a cultura jurídica inquisitória arraigada no consciente e inconsciente do coletivo e das práticas jurídicas brasileiras, em momento em que ideais progressistas perdem espaço para o conservadorismo onde o punitivismo penal constitui seu traço marcante, não enxergamos para o futuro facilidades de se entender que a segunda parte do sempre mencionado art. 3º-A do Código de Processo Penal estará, por assim dizer, absorvida pela amplitude da primeira parte, conforme antevisão de Vinícius Assumpção:

É relevante notar – e nisso reside um dos grandes problemas das mudanças legislativas pontuais – que a nova Lei não se encarregou de revogar dispositivos do CPP que são diretamente incompatíveis com o sistema acusatório. Além disso, percebe-se que a redação do art. 3º-A poderia ser mais explícita, considerando que estabelece a estrutura acusatória do processo penal, mas ressalta com mais ênfase a fase de investigação, quando se sabe que há dispositivos que permitem a iniciativa do juízo também na fase processual – esses entendemos superados por força da segunda parte do art. 3º-A. Em função da matriz constitucional que prevê a titularidade de acusação como privativa do Ministério Público (art. 129, I, CF/88) e o novel dispositivo do CPP (art. 3º-A), toda a persecução penal – fase investigativa e processual – deve-se pautar pela estrutura acusatória.

²BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.104-MC. Rel. Min. Roberto Barroso. Julgamento 21/05/2014. DJe 30.10.2014.

Com isso, não há mais espaço para os poderes instrutórios do juízo no processo penal brasileiro, o que, aliás, também se depreende da parte final do dispositivo, quando se refere à impossibilidade de substituição da atuação probatória do órgão de acusação (art. 3º-A, in fine, do CPP). (ASSUNÇÃO, 2020, p. 49).

Se confirmada a interpretação jurídica mais sólida de Vinícius Assumpção, finda estaria no particular a antinomia própria entre os dispositivos da Constituição Federal e a legislação infraconstitucional.

Os Procuradores da República Francisco Dirceu Barros e Vladimir Aras em artigo intitulado “O Princípio Acusatório no Processo Penal” trazem relevantes informações no que tange à imparcialidade do julgador e à interferência indevida deste “na condução de una causa criminal” a luz dos princípios regentes do sistema acusatório:

Também no campo da soft law, vale lembrar que, nos Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial, de 2001, no âmbito do valor “imparcialidade”, a regra 2.2 reforça o modelo acusatório de separação de funções no processo penal, ao recomendar que a “interferência constante” na condução de uma causa criminal deve ser evitada. De fato, o comentário 63 aos Princípios diz que: “63. Um juiz tem o direito de fazer perguntas visando clarificar os assuntos. Mas se interfere constantemente e virtualmente, assumindo a condução de um caso civil ou o papel de persecução em um caso penal, e usa os resultado de seu próprio questionamento para chegar a uma conclusão no julgamento do caso, o juiz se torna advogado, testemunha e juiz ao mesmo tempo, e o litigante não recebe um julgamento justo”. (BRASIL, Ministério Público Federal, 2020, p. 120.)

Ecos da reforma pontual levada a efeito no Código de Processo Penal trazendo consigo quiçá em definitivo o começo da verdadeira implantação do sistema acusatório no Brasil começam a surgir aqui e ali na jurisprudência. Em decisão recente no Habeas Corpus 160.496 do Supremo Tribunal Federal, da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, ainda em caráter provisório, datada de 4 de setembro de 2020, confluiu-se ao entendimento naquele caso específico o seguinte:

O comportamento revela a adoção de postura ativa na produção probatória, visando suprir a ausência de provas produzidas pela parte. Embora os artigos 156, inciso II, e 209 do Código de Processo Penal possibilitem a iniciativa do Juiz, tem-se que esta há de estar voltada a dirimir dúvida. Contraria a organicidade do Direito atuar em função do Estado acusador.

Com todas as reservas de se estar diante de uma decisão provisória e monocrática, ela traz consigo uma quase sutilidade a respeito da revogação ou não dos arts. 156, inciso II, e 209 pelo art. 3º-A do Código de Processo Penal, particularidade que possui imenso significado para raciocínio do Autor. É que na sobredita decisão, fica explícito o convencimento do julgador de que tais artigos estão em vigência quando se diz que “possibilitem a iniciativa do juiz”, ainda para adiante restringi-los a dissecação de dúvidas.

CONCLUSÃO

Como dito alhures, o caminho para a efetivação do sistema acusatório perpassa por uma série de fatores, alguns sem nenhuma base científica a exemplo dos tais costumes e práticas judiciárias.

Sem se avançar nos direitos políticos, econômicos, sociais e no aperfeiçoamento permanente do Estado Democrático, de nada adiantarão modificações pontuais na legislação, afinal, cada sistema processual penal afigura-se como o rosto de cada regime político: se democrático, haverá de prevalecer o sistema acusatório; se autoritário, o sistema inquisitivo.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mauro Fonseca de. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006.

ASSUNÇÃO, Vinícius. Pacote anticrime. 1. ed. São Paulo: Saraiva Jur. 2020.

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BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial [da] União. 13 out. 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm Acesso em: 17 out. 2019.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. (Código de Processo Civil). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 30 abr. 2020.

BRASIL. Ministério Público Federal. Câmara de Coordenação e Revisão, 2. Inovações da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. (Coletânea de artigos, v. 7). Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/coletaneas-de-artigos. Acesso em: 15 jun. 2020

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.104-MC. Rel. Min. Roberto Barroso. Julgamento 21/05/2014. DJe 30.10.2014.

CHILE. Ley n. 19.696, de 29 de setembro de 2000. Establece Código Procesal Penal. Disponível em: https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=176595. Acesso em: 29 set. 2019.

COLÔMBIA. Ley 906, de 31 de agosto de 2004. Por la cual se expide el Código de Procedimiento Penal. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/mla/sp/col/sp_col-int-text-cpp-2005.html. Acesso em: 26 ago. 2019.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: ______. (org.). Crítica à teoria geral do direito processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luis Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

JUNOY, Joan Picó. O juiz e a prova: estudo da errônea recepção do brocardo iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientizam e sua repercussão atual. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Revista do Advogado, 2017.

MANDARINO, Renan Posella. Limites probatórios da delação premiada frente à verdade no processo penal. Franca: Universidade Estadual Paulista, 2016.

POLANO-ORTS, Miguel; QUINTERO, María Eloísa. Principios del sistema acusatorio: uma visíon sistémica. Lima: Ara Editores, 2010.

PORTUGAL. (1976) Constituição da República Portuguesa. Disponível em: https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. Acesso em: 28 set. 2019.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. direito processual penal. Salvador: JusPodivm, 2007.

José Maurício Vasconcelos Coqueiro

Advogado Criminalista, Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, Pós-graduado (especialista) em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minhas Gerais (PUC-MG) e Pós-Graduado em Docência Universitária e Ensino Superior pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Intimação na era digital – Marcelo Cintra Zarif

É inquestionável que o uso de recursos tecnológicos  trouxe grande avanço para o mundo civilizado,  especificamente no âmbito do direito e, em particular, dos processos judiciais, representando hoje um avanço incomensurável.

Contudo, a velocidade na incorporação das modernas ferramentas que permitem substituir o físico pelo virtual demanda o adequado acompanhamento no que concerne ao respeito das garantias constitucionais e ao direito de todos os cidadãos.

No que tange às intimações, que se processam no transcorrer do processo, ocorrem fatos que exigem nossa atenção e cuidado para que essas garantias não sejam atropeladas.

Fiel a esses novos tempos, dispõe o artigo 270 do vigente código de processo civil que “as intimações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei”.

A lei que regulou a questão é a 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que em seu artigo 5º. Estabelece que “as intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do artigo 2º desta lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônica.”

Ademais, estabeleceu que a data de início do prazo é aquela em que o intimado acessar o sistema e tomar conhecimento do teor da intimação e, mais, que se não for o sistema acessado no período de 10 dias, a intimação considera-se feita ao final desse prazo.

Em outras palavras, dispensou-se o Judiciário de efetuar essas intimações em um Diário Oficial Eletrônico, como ainda acontece na Bahia, por exemplo, e criou para as partes, e seus advogados, a obrigação de entrar constantemente nos diversos portais, utilizadas pelo Poder Judiciário, em seus diferentes órgãos,  para saber se existe alguma publicação de seu interesse.

O ônus é insuportável em  razão da quantidade de tribunais  do país que já adotaram a publicação em sistemas próprios, prescindindo da publicação em diário eletrônico, dentre os quais são mais conhecidos o PJe, o PROJUDI e o e- SAJ, além do e-PROC (TRF-4), o TUCUJURIS (TJ-AP) e o APOLO (TRF-2), que ainda se subdividem entre as cortes superiores, federais, estaduais e trabalhistas. É possível alcançar uma média nacional de 100 (cem) portais que deverão ser acessados diariamente pelo advogado que atua em âmbito nacional.

A título de exemplo, só no âmbito estadual, o TJ/BA utiliza o PJe (1º), PJe (2º),  o PROJUDI, todos eletrônicos, além do e-SAJ e o famigerado SAIPRO. Na esfera federal, ainda há, no TRF da 1ª Região, o portal do PJe (1º) e do PJe (2º), ambos eletrônicos.

Ou seja, seguida ao pé da letra essa norma, o advogado militante teria que, diariamente, acessar, no mínimo, todos os 5 (cinco) sistemas eletrônicos, além do sistema próprio da Justiça do Trabalho, a fim de evitar a certificação de decurso de todo e qualquer ato processual não publicado.

Não raro, cada uma dessas plataformas exige diferentes configurações de computador, downloads de aplicativos diversos (ex: Java, Shodô, webSigner, icpBravo, PJE-Office etc) e utilização de navegadores específicos.

Para evitar tamanho caos, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 234/2016 e instituiu o Diário de Justiça Eletrônico (DJEN) como instrumento de publicação dos atos dos órgãos do Poder Judiciário.

Esse DJEN que representa a superação de todos os problemas antes apontados, no entanto, não foi implantado, em que pesem os já mais de 4 anos decorridos desde a edição da Resolução.

Essa mesma Resolução previu que até que seja implantado o DJEN, as intimações dos atos processuais sejam realizadas via Diário de Justiça Eletrônico (DJE) do próprio órgão.

Como destacado, aqui na Bahia, na Justiça Estadual, não é sentido ainda o problema porque os atos são publicados no DJE, contudo, a questão começa a surgir no TRF da 1ª. Região e já é muito sério em outras localidades como Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte, impondo a necessidade de adoção de providências.

Na mesma esteira de problemas que dificultam o exercício da advocacia, não tem sido cumprida uma regra simples e objetiva que muita auxiliaria o bom exercício desse mister. A efetivação das intimações à sociedade de advogados e não aos integrantes dessa,  ou aqueles que dela  participam na qualidade de associado ou contratado.

Em boa hora, atendendo ao crescimento cada vez maior dessas sociedades, o artigo 272, parágrafo 1º estabeleceu que “os advogados poderão requerer que, na intimação a eles dirigida, figure apenas o nome da sociedade a que pertençam, desde que devidamente registrada na Ordem dos Advogados do Brasil”.

Essa providência, desde que requerida, elimina uma outra dificuldade prática que diz respeito à pesquisa em nome de elevado número de advogados que integrem uma procuração, incluindo-se aqueles advogados que já não mais participam daquele processo por terem se desligado da sociedade.

No entanto essa prática não vem sendo observada pelo Judiciário que, sob os mais diferentes pretextos, evita fazer as publicações em nome das sociedades de advogados.

Eis aí duas questões relativamente simples de se resolver, mas que causam enormes prejuízos aos profissionais da advocacia e que desafiam uma ação mais enérgica da OAB na defesa desses legítimos interesses.

Marcelo Cintra Zarif

Graduado pela USP, especialista em Direito processual Civil pela PUC- SP, Ex-Conselheiro Federal da OAB pela Bahia, advogado há mais de 40 anos, com larga experiência nas áreas do direito Civil, Consumidor, Educacional e Público.

Advocacia extrajudicial no Interior – burocracia ou solução? – Gabriela Macedo

É fato notório que o judiciário sofre uma forte crise, especialmente pela quantidade de demandas ajuizadas, o que gera um congestionamento, impactando diretamente no trabalho do advogado e na resolução das demandas dos cidadãos em geral. Por conta disso, o próprio STF vem se posicionando no sentido de que é preciso fazer uma planejamento de desjudicialização. Mas como a desjudicialização poderia ser um bom caminho para a advocacia?

Sabemos que, na faculdade de Direito, temos muitas matérias processuais e pouco se fala atividades jurídicas extrajudicial e por isso é tão difícil para o advogado conseguir enxergar possibilidades de atuação que não envolvam o judiciário.

A advocacia extrajudicial é muito mais do que mediação e acordos extrajudiciais. É um oceano azul, pouco explorado na advocacia, que traz celeridade para a resolução das demandas dos clientes e rápida remuneração para os advogados.

Sabemos que existem demandas extrajudiciais em que a própria lei determina que a presença do advogado é indispensável, como por exemplo, nos casos de divórcio, inventário e usucapião extrajudicial, no entanto, existe inúmeros outros serviços que muitos advogados sequer conhecem e que podem ser feitos de forma extrajudicial. Podemos citar algumas opções muito rentáveis, como a ata notarial, a notificação extrajudicial, a elaboração de procurações e documentos públicos, a regularização de imóveis, entre outros.

No interior, especialmente, é um ramo pouco explorado por advogados e também pouco conhecido pelos clientes, mas que tem uma facilidade ainda maior de atuação, especialmente nas serventias extrajudiciais, tendo em vista a menor quantidade de demandas. É interessante que o advogado, ao apresentar a opção do serviço extrajudicial ao cliente, apresente todas as vantagens, como a redução de custos e celeridade na resolução do assunto, de forma a convencê-lo que é a melhor opção.

Existe um grande mito sobre burocracia nos cartórios extrajudiciais, que precisa ser esclarecido. Assim como em demandas judiciais temos os Códigos de Processo, que contemplam prazos, opções de recursos, entre outros, no extrajudicial existe os Códigos de Normas das Serventias Extrajudiciais, que são provimentos editados pelos Tribunais de Justiça (Na Bahia – PROVIMENTO CONJUNTO CGJ/CCI Nº 03/2020) que estabelece a padronização de procedimentos e a desburocratização dos serviços extrajudiciais, de modo que não existe margem para as burocracias que existiam antigamente.

Sendo assim, os serviços extrajudiciais se mostram como uma ótima opção para os advogados, especialmente no interior, tendo em vista que são ainda menos explorados, trazendo recebimento rápido de honorários e celeridade e satisfação para os clientes.

Gabriela Macedo

Advogada pós-graduada em Direito Imobiliário e Processual Civil, professora, empresária e fundadora do perfil no instagram @falecomaadv. gabriela@gabrielamacedo.adv.br

A força nacional, o autoritarismo e o pacto federativo – Rômulo de Andrade Moreira

No início deste mês, a União, por meio da Portaria 493/2020, editada pelo Ministério da Justiça e de Segurança Pública, autorizou unilateralmente o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em dois municípios baianos: Prado e Mucuri. O Estado da Bahia, evidentemente, inclusive por não ter sido solicitada alguma ajuda federal, interpôs junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Cível Originária nº. 3427, distribuída ao ministro Edson Fachin, que determinou, em decisão liminar, a retirada, no prazo de 48 horas, de todo o contingente da Força Nacional enviado ao local.

A “intervenção” federal dar-se-ia no período de 3 de setembro a 2 de outubro e seria feita, supostamente, para dar apoio ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no cumprimento de mandado de reintegração de posse em dois assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

Segundo constou na ação interposta pela procuradoria-geral do Estado da Bahia, “apesar da operação ter sido autorizada para a preservação da ordem pública e da incolumidade de pessoas e patrimônios, não há qualquer indício de conflitos sociais, desestabilização institucional ou riscos de outra natureza que justificassem a medida”, razão pela qual “a Força Nacional teria sido mobilizada para intervir na segurança pública do estado de forma desarrazoada e violadora de sua autonomia federativa.”

Na sua decisão de natureza liminar, o relator afirmou que o art. 4º. do Decreto nº. 5.289/2004, quando dispensa a anuência do governador no emprego da Força Nacional, viola o princípio da autonomia estadual. Este dispositivo prevê que a Força Nacional pode ser empregada mediante solicitação expressa do governador ou de ministro de Estado. Nada obstante este dispositivo normativo, e conforme observado pelo ministro Fachin, a jurisprudência da Suprema Corte consolidou-se no sentido da autonomia dos Estados, desautorizando o disposto no referido decreto.

Segundo consta da decisão monocrática, “a definição dos contornos de um federalismo cooperativo pressupõe que os entes federados sejam permanentemente protegidos contra eventuais tendências expansivas dos demais.” Ademais, conforme também ressaltado pelo relator, a Lei nº. 11.473/2007 estabelece a necessidade de um convênio entre as partes sempre que houver a necessidade de uma operação dessa natureza. Assim, nos termos da decisão preliminar, seria “necessária uma concorrência de vontades para que não se exceda o limite constitucional de proteção do ente federado.”

Por fim, justificando ainda a liminar, o relator referiu-se aos “enormes riscos para a estabilidade do pacto federativo, acrescidos ainda das circunstâncias materiais da ação, isto é, o exercício dos poderes inerentes à segurança pública e o possível uso da violência”, lembrando também que o “quadro geral de pandemia da Covid-19 exige que a mobilização de contingentes de segurança seja sensivelmente restrita e sempre acompanhada de protocolos sanitários.”²

Após a concessão da liminar, já na sessão realizada no último dia 24 de setembro, e por maioria de votos, o plenário do Supremo Tribunal Federal referendou a decisão do ministro relator, confirmando a necessidade da retirada de todo o contingente da Força Nacional enviado aos dois municípios baianos, firmando-se, doravante, o entendimento que “a utilização da Força Nacional sem a autorização do governador viola o princípio constitucional da autonomia dos estados.”³

Apenas o ministro Luís Roberto Barroso considerou legítimo que a Polícia Federal solicite o auxílio para proteger o patrimônio da União, em razão do disposto no art. 4º. do Decreto nº. 5.289/2004, que autoriza a atuação da Força Nacional por solicitação de governador ou de ministro de Estado, não havendo, segundo ele, violação da autonomia dos entes federados.

Pois bem.

Como se sabe, e segundo se depreende do art. 18 da Constituição Federal, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, entidades autônomas que formam a estrutura federativa brasileira. Estes entes federados detêm autonomia, seja em razão da existência de um governo local (com órgãos governamentais independentes da União), seja porque possui competências exclusivas, com plena capacidade normativa a respeito de determinadas matérias (neste sentido, veja-se, dentre outros, os arts. 17, 23, 24, 25, 29, 42 e 32, da Constituição Federal).

Apenas se admite a quebra do equilíbrio federativo, muito excepcionalmente, no caso de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal, e dos Estados nos Municípios, nas situações expressamente previstas nos arts. 34 a 36 da Constituição. Esta medida extrema – que, de toda maneira, fere a autonomia federativa, mas está prevista na própria Constituição -, afastando temporariamente a atuação das entidades federadas, “só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção.”4

Esta autonomia dos entes federativos, como é evidente, decorre da própria concepção de federalismo que, em razão de “sua envergadura histórica e sociológica, é uma tendência natural da organização social, sendo, por isso, mais amplo do que qualquer ordem jurídica ou mesmo política.”5

Neste modelo, como diz também Afonso Arinos, são mais valorizadas “as relações de coordenação do que as relações de subordinação”, afinal “toda centralização tende à subordinação, e, consequentemente, à hierarquia e à disciplina rígidas.” Para ele, neste aspecto específico, o federalismo é um verdadeiro “processo de garantia da liberdade, desde que levada a efeito dentro da ordem jurídica e dentro de um esquema geral intangível.”6

Também abordando o mesmo tema, ainda que sob a ótica da ordem jurídico-constitucional inaugurada pela Constituição de 1946, anota Pinto Ferreira que “a verdadeira doutrina a explicar o regime de relações entre a União e os Estados-membros é a teoria da descentralização política, consistente na repartição de competências entre os órgãos centrais e os órgãos locais.”7

Também comentando a Constituição de 1946, certamente (até então) a mais democrática da República, Pontes de Miranda afirmava que “no Estado federal a união é permanente, ou baseada no que quiseram os Estados-membros, ou no que o povo dele, Estado federal, que antes não o era, quis. E a verdade histórica e doutrinária, a respeito do Brasil, é a última.” Para ele, nada obstante, a federação não ser uma mera medida técnica de descentralização, nela “cada parte tem (ainda imaginariamente) o seu status e perde algo dele em proveito comum”, conferindo-se aos Estados-membros um pouco do que era central.8

Na doutrina estrangeira, destaca-se Häberle, para quem o Estado federal “é uma estrutura constitucional que frequentemente é entendida como mero ´princípio da organização estatal`, mas que hoje constitui um princípio material essencial da Constituição da cultura.” Para ele, “a estrutura do Estado federal é parte integrante do Estado constitucional.”9

Ainda analisando o princípio federativo, e desde o ponto de vista da Alemanha unificada, Häberle destaca com um dos seus pilares exatamente “a distribuição de competências entre a Federação e os Länder, como uma ´importante manifestação do princípio federativo… e ao mesmo tempo como elemento de uma divisão funcional adicional dos poderes. Esta manifestação distribui o poder político e estabelece um marco jurídico-constitucional para seu exercício.`”10

Ora, evidentemente, e apesar do entendimento de um dos ministros da Suprema Corte, não se compatibiliza com os princípios de uma república federativa uma intervenção federal como a que foi levada a cabo neste caso. Aqui, sem dúvidas, reflete-se um caráter autoritário de um governo que, de mais a mais, parece ignorar os laços democráticos e republicanos que devem unir as relações entre a União e os Estados.

Deve ser veementemente afastada qualquer tentativa – ainda que eventualmente respaldada por um dispositivo normativo inconstitucional – de intromissão federal nas coisas pertinentes à competência do Estados, ainda mais quando o próprio ente federativo dispensa tal ajuda, tratando-se, sem dúvidas, de um traço autoritário na condução do governo.

Aqui, por óbvio, utiliza-se o substantivo autoritarismo (respaldando-se na lição de Bobbio, Matteucci e Pasquino) em dois dos seus possíveis contextos: como uma disposição psicológica a respeito do poder e como uma manifestação de uma ideologia política.11 No sentido psicológico, e num certo aspecto, pode ser identificada uma personalidade autoritária quando há uma “disposição em tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e em geral todos aqueles que não têm poder e autoridade.”12

Por fim, e muito a propósito do caso brasileiro, é necessário ter em conta que o autoritarismo, muitas vezes, “conquistou adeptos pelo que fez e não apenas pela imagem que apresentou a si mesmo. Ainda mais que muitas dessas grandes ‘conquistas` tivessem um alto preço a ser pago mais tarde, no curto prazo elas possibilitaram que a ditadura se estabelecesse, prosperasse e ficasse mais ambiciosa.”13

É preciso, portanto, atenção!

Rômulo de Andrade Moreira
Procurador de Justiça na Bahia, Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS
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